23 de out. de 2013

"O apelo do cão é muito grande, tanto é que levaram todos os beagles, mas deixaram todos os ratos". Essa é a frase que marca mais um evento midiático que, se ocorrido em outras épocas, poderia não ter feito tanto sucesso, limitando-se a no máximo um quarto de página de tablóide. No ano de 2013, no entanto, é a polêmica que faltava pra garantir pauta em todos aqueles programas de auditório vespertinos até o início da retrospectiva. "Contra ou a favor disso ou daquilo? Qual a sua opinião?". E no fim das contas, tudo não passa de mais uma instância da boa e velha enquete de polarização. "Eu te proponho isso e aquilo. Qual você escolhe? Qual você prefere? Pra qual destes você torce?". 

Coloco então minhas considerações pelas quais acredito que não seja possível neste caso (bem como em muitos outros) tender a um ponto de vista ou a outro. Por um lado, a frase do início já diz tudo. Claramente não se trata de uma revolta pelos direitos dos animais. É dó. Dó do cachorrinho fofuchinho. É pena e é também auto-piedade, porque trata-se principalmente de um sentimento de culpa (seria ousado dizer 'cristão'?) pela idéia de sofrimento de um semelhante - dada nossa atual situação, onde o ser humano trata o cachorro como um semelhante, mais do que qualquer outro primata, rodento ou mesmo um indivíduo de mesma espécie, caso seja praticante de atividades ilícitas/subversivas. 

Por outro lado, a indústria farmacêutica, aos moldes contemporâneos, é culpada pela sua própria existência. Interessante a confusão criada, sobre se a pesquisa era para cosméticos ou para medicamentos; eu mesmo, quando entro numa farmácia, muitas vezes não sei dizer, nem pela embalagem, nem pelos preços e nem pelo resultado produzido, se um determinado produto é remédio ou cosmético. Mas é fato que os dois vendem no mesmo lugar. E vendem, vendem muito. Vendem tanto que se todo mundo fosse bonito ou se ninguém ficasse doente, a NASDAQ entraria num irremediável colapso em pouquíssimo tempo. No final das contas, a gente ouve a velha ladainha global falando que quem sustenta o tráfico de drogas é o usuário que compra, mas eles simplesmente se esquecem de replicar esse discurso explicando que quem deixa o bode careca e o macaco com queimaduras é quem compra o cosmético caro, que cada pílula pra dor de estômago que a dona de casa toma depois daquela feijoada já foi também experimentada por ninhadas inteiras de ratos que sequer tiveram o mesmo ímpeto de gula selvagem e bestial. Pra ver o nível da irônica estrumecência deste episódio, o instituto afirmou que se tratava de uma pesquisa para um medicamento contra o câncer, mas não poderia revelar nada sobre o medicamento ou mesmo detalhes sobre a doença por questões de patentes, ou seja, por motivo do maior de todos os cânceres da nossa sociedade atual.

Avançando ainda um pouco mais: ainda que a galera do nheco-nheco não concorde em crucificar a indústria farmacêutica por sua estampada imoralidade, vamos entendê-la apenas como um mal necessário, um urubu do mundo capitalista, consequência de um estilo de vida mórbido onde as pessoas têm a escolha de uma vida saudável, mesmo que uma salada custe mais que o dobro de um x-bacon, além de toda a relação passiva que temos com nossos alimentos. 

"Segundo dados do INCA, estão entre as principais variáveis geradoras de processos cancerígenos: hábitos alimentares inadequados (35%), tabagismo (30%) e um conjunto complexo de fatores relacionados à exposição a radiações ionizantes, submissão a contextos ambientais estressantes, comportamentos de risco e fatores genéticos, étnicos e ocupacionais (35%)" - http://www.sbpo.org.br

Ok, então devemos transferir boa parte dessa culpa da indústria farmacêutica para as indústrias de cigarros, alimentos, panelas com teflon, caixas de amianto, enxaguantes bucais, cosméticos (de novo?) e mais uma lista enorme de coisas. Ou melhor inda, pros seus mantenedores: as pessoas. Transferimos pra quem come o big mac, por não poder pagar salada todo almoço, para o fumante, que comprou um dia a bela propaganda do cigarro na boca ou mesmo porque não suporta a pressão do dia-a-dia cozinhando big macs pros outros comerem. É sumariamente culpado aquele que foi apenas besta em acreditar que o mais bonito é o que passa o creme tal na cara, usa o shampoo do anúncio, acreditou no valor nutricional do nugget, da barrinha de cereal, do suco em caixinha. Quem mata beagle é a conivência com as práticas abusivas de mercado. Todo mundo já matou beagles sem saber. 

É triste, pois eu achava que o homem só podia fazer experiências genéticas com cães e desde que elas levassem muitos e muitos anos, e tão somente pra produzir raças que fossem bonitinhas.... como os beagles.

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